sábado, 15 de março de 2014

"SOU DEVEDOR" (Rm 1:14)

 “sou devedor”




Texto referencial: Romanos 1:14

“Eu sou devedor, tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes”

       Paulo, no contexto da expressão em destaque, expressa o seu desejo em visitar alguns crentes a fim de edificá-los na fé, confortá-los e comunicar-lhes algum dom espiritual (Rm 1:10,11,12). E é exatamente nessa perspectiva que Paulo, já no verso 14, expõe o porque deve ir ter com eles e anunciá-los o Evangelho de Jesus Cristo: “Eu sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como ignorantes” (Rm 1:14) e, logo, ele completa: “[...] estou pronto para também vos anunciar o Evangelho a vós que estais em Roma” (v.15), conotando assim o seu dever. Paulo, em vista do contexto, estava dizendo o seguinte: “eu quero ir visitar todos aí em Roma também, pois é meu dever (dívida) levar o Evangelho de Cristo até vocês, assim como o faço em vários lugares”. Por isso usou a expressão: “sou devedor tanto a gregos como bárbaros, sábios e ignorantes”, pois era costume dos romanos chamarem todas as pessoas que não tinham a cidadania e nem estavam inseridos na cultura romana de “bárbaros” (uma expressão até pejorativa, porém muito aceita na época, inclusive até o século IV depois de Cristo). Isso deixa claro que: Paulo já tinha um trabalho estabelecido com alguns “bárbaros” (como os gálatas, por exemplo) e, agora, mediante a fé surgida dos romenos, tinha também uma dívida de amor com eles. Portanto, Paulo dizia aos irmãos romanos: “vocês também foram chamados para serdes de Cristo (v.6), assim sendo, devo ir até vocês”. Esse sentimento paulino de dever ir é expresso com bastante evidência nos versículos 8 ao 15.

       Então, numa primeira análise da expressão “sou devedor”, reforçada por Paulo no versículo 14, podemos identificar o seguinte: a expressão “sou devedor”, descrita por Paulo, conota a dívida que ele tinha relacionada ao seu chamado, ou seja, à sua função de apóstolo. Não é uma dívida a Deus, não é uma dívida ao Senhor Jesus e nem uma dívida à congregação ou, a Tiago, Pedro e João (apontados como “colunas da igreja” e, sob certo aspecto, lideranças da época), mas sim uma dívida para com o outro.  Não há Evangelho vivido fora do horizonte intersubjetivo, ou seja: não tem como viver o genuíno Evangelho de Jesus Cristo sem considerar o outro, o próximo, o irmão, o necessitado.  Nós, quando aceitamos o chamado (seja na perspectiva calvinista ou arminiana), aceitamos a missão dada à Igreja: levar a mensagem , fazer a vontade do Pai e realizar a sua obra (João 4:34). A essa dívida, chamamos: dívida de amor, pois a Igreja deve (disse deve) expressar e testemunhar desse amor levando a mensagem da cruz (que foi a maior expressão de amor). Lógico e racionalmente, podendo dizer também, coerentemente, quando a Igreja age, ela age segundo a vontade do Pai. Eu e você (igrejas do Senhor) um dia nos colocamos diante de Deus - remidos pela graça - aceitando a missão outorgada aos eleitos: revelar a Cristo pelo poder do Espírito Santo (ver em João 17: 23, Atos 1: 08). Sendo essa a vontade incontestável do Pai, ao sermos chamados, passamos a ter uma certa dívida também com o Senhor, embora remidos, devedores. Isso é tão verdade que Deus (que é justo) nos cobrará severamente o resultado do nosso trabalho (ver em: Mt 25:41, Lc 8: 02, Jo 15: 02).
       Contudo, Deus não é credor como alguns insistem em identificá-lo, apenas justo. No entanto, isso não anula o nosso compromisso que um dia foi selado com Ele, aliás, todo compromisso configura um certo patamar de dívida: devemos cumprir nossos compromissos, não é mesmo? No caso em vigência, precisamos levar o Evangelho e vivê-lo tendo para com o próximo a dívida de amor. Essa é a nossa obrigação como cristãos! Vejamos o que Paulo fala dessa dívida: “porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta essa obrigação; e ai de mim, se não anunciar o evangelho! E por isso, se o faço de boa mente, terei prêmio; mas, se de má vontade, apenas uma dispensação me é confiada” (1 Coríntios 9:16-17).
       A expressão “devedor”, usada por Paulo, está no texto original como “opheiletes”, transliteração de οφειλέτης, cujo significado é literalmente “devedor”, no entanto, pode significar também (pela riqueza semântica do termo) “pessoa endividada”, “transgressor” (contra Deus), “pecador”, dentre outros termos. É um substantivo e tem ligação com o verbo “opheilo” que significa literalmente “dever”, mas, no contexto de Romanos 1, a expressão “devedor” está mais para “alguém moralmente obrigado ao desempenho de algum dever”, ou seja, conota uma dívida moral e não uma dívida condenatória como a judicial, por exemplo. Portanto, sob esse aspecto, Deus não é “credor” de nossa falha vida, pois, como um dos significados da expressão, somos “transgressores”, “pecadores” (I Jo  ), porém remidos e eleitos segundo a presciência do Criador. Por justiça, haverá sim certo juízo para os chamados que não desempenham sua obrigação cristã (não dão frutos), mas não cabe a instituição religiosa nenhuma “cobrar” essa “dívida”, pois ela é moral e está sob a economia daquele que elegeu e chamou os tais, a saber, o Deus soberano. Podemos exemplificar essa dívida moral como uma dívida de “obrigação” em relação ao próximo, algo que se passa no âmbito subjetivo e se revela no âmbito intersubjetivo (no agir em prol do próximo). Exemplo: se meu vizinho  sempre me saúda pela manhã, me sinto na obrigação de responder a saudação, pois há dentro de mim o respeito por esse dever e, no caso do levar e viver o Evangelho, fazemos isso com uma inclinação: amor a Deus e amor ao próximo. Nesse sentido somos sempre devedores.
        Usando ainda desse exemplo que apliquei acima, chamo a atenção para o ato de amor do próprio Cristo na cruz. Bem, não é como o ato do vizinho que me saúda com ”bom dia” e eu retribuo com o mesmo “bom dia”, mas sim um ato de amor totalmente superior que jamais poderemos retribuir de forma semelhante, a não ser, vivendo o Evangelho, carregando nossa cruz, sofrendo as aflições de Cristo, amando o próximo como a nós mesmos e nos edificando todos os dias em amor e temor, chorando o choro do irmão, alegrando também em sua alegria, mostrando ao mundo que há um Deus vivo em nós, a saber o Cristo que não está mais na cruz, mas vive e se revela em nossas vidas. Nesse horizonte, somos devedores! Como pagar essa dívida? Não vamos pagar, pois foi paga com amor. No entanto, podemos retribuir com amor.
        Quando Pedro, em João 21:17 se entristeceu com a terceira pergunta de Jesus, era porque tal pergunta fazia menção de um tipo de amor diferente ao empregado nas duas primeiras perguntas. Se tratava do amor “phíleo”, enquanto nas duas primeiras foi aplicado o amor “agapao” (de ágape). Esse terceiro amor na pergunta do Mestre significa: “Simão, filho de Jonas, quer ter um relacionamento comigo?” ou, “está pronto para ser meu amigo de verdade?”. Jesus falava de um amor recíproco. Essa pergunta até hoje entristece a muitos que não se encontram preparados para respondê-la. Ao identificar nossa real humanidade e fraqueza, percebemos o tamanho da nossa dívida.
       Mas, esse sentimento e também reconhecimento da dívida nos faz dispostos diante de Deus para realizar sua vontade e prosseguir a jornada que nos foi proposta.

A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei. (Romanos 13: 08)

       Concluindo então nossa análise, podemos perceber que, à primeira vista, o texto bíblico misturou as coisas. Afinal, qual a relação entre dívida financeira, institucional ou judicial e ajuda mútua proposta pelo Evangelho? Paulo, entretanto, é enfático quando escreve: “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor recíproco...” (Romanos 13:8).

       A história das civilizações ensina claramente uma coisa: comunidades que não praticaram ajuda mútua se autodestruíram. Faltou-lhes o verdadeiro Evangelho, embora muitos fossem “cristãos”. Por que a Bíblia descreve o “amor recíproco” como um mandamento, como uma “dívida”? Porque a natureza essencial do amor é a postura da doação. Em mais de um contexto Jesus associa a atividade de amar com o cumprimento dos desígnios divinos. “Se Me amardes, obedecereis os meus mandamentos”. “E o Meu mandamento é que vos ameis uns aos outros”... “como Eu vos amei.”. O amor recíproco garante a efetividade das comunidades cristãs (que chamamos de igreja), tanto quanto o egocentrismo garante a dissolução das instituições humanas (religiosas). Dizer que o amor recíproco deve depender da “boa vontade” – simplesmente - de cada indivíduo é quase tão grave quanto propor uma política financeira pública que dependa da veneta dos contribuintes. Amar é a grande dívida que assumimos com o Senhor. Ele nos “amou quando éramos ainda pecadores”. Por isso, diz a Bíblia, “o amor de Cristo nos constrange” e deve sempre nos constranger a compartilhar com o próximo o instrumento divino que nos capacita a sermos “filhos de Deus”.

Paz a todos!


Gabriel Felipe M. Rocha

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