domingo, 13 de abril de 2014

O lugar das Escrituras na experiência cristã

Ficou grande, mas vale a pena ler:

Mente e coração aquecidos: 
O lugar das Escrituras na experiência cristã


A experiência cristã é fundamental, necessária e mede o quanto estamos vivendo realmente a graça de Deus. No entanto ela é submissa às Escrituras e deve ter o amparo e a tutoria da mesma.


Texto:
Lucas 24: 13 - 35, 44 - 53

Discernir a espiritualidade cristã do misticismo nem sempre é fácil. O rev. Augustus Nicodemos percebe que o misticismo está muito próximo à tendência dos teólogos liberais, pois ambos buscam uma “espiritualidade” sem a mediação das Escrituras. Assim, infere-se que entre o místico e o espiritual estão as Escrituras como base à experiência, e não o seu contrário.

Há sutis diferenças, por exemplo, em dizer que a Palavra de Deus é revelada e Deus continua falando sobrenaturalmente por ela (e as vezes podendo falar intimamente por um versículo ou um contexto) e em afirmar que se eu mergulhar sete vezes no rio Jordão serei curado ou se eu passar o óleo da Terra Santa eu receberei bênçãos sem medida ou se eu fizer uma arca conforme a Arca da Aliança do A.T. e guardar em minha casa serei abençoado como Obede Edom. Há uma diferença entre o misticismo bíblico e o misticismo não bíblico e a crença exotérica.
Assim, da mesma forma, há uma sutil diferença entre refletir em minhas orações sobre o valor do sangue de Jesus e a oração feita em sã consciência fazendo menção de seu recurso espiritual – que tem um conteúdo de fé dentro dos limites místicos bíblicos e dizer que Deus só me atende se eu usar determinada frase. Há diferenças. Mas o erro da segunda não anula a eficácia e a espiritualidade da primeira.

Não há dúvidas de que a Fé Cristã é em seu conteúdo mística. Pensemos, por exemplo, na ceia; o pão e o vinho não são o símbolo da fé no Salvador (Mc14. 22; Lc 22.19; 1Co 10.16; 11.27)?
O problema é que o homem se inclina a dar ao místico certa compreensão irracional; isto é, o “espiritualmente místico” se torna em místico-fenomênico. Deus pode ser tocado, visto, “cheirado”, pois se torna parte de uma realidade irracional da (im)compreensão da religião. E assim, a razão humana supera-se saltando de sua limitada capacidade de pensar Deus para o deus tangível, fruto de seus pensamentos (Gn 11.1ss; Rm. 1.23, 1Ts. 2.4). 
Ora, diz Augustus Nicodemus:

Creio que o misticismo bíblico – união com Cristo realizada na sua morte, vivida pelo Espírito, celebrada na Ceia e vivenciada pelo uso dos meios de graça – continua sendo o padrão para os cristãos. O que falta em muitos é a disposição para vivê-lo.
É esta espiritualidade sadia, mística, mas não exotérica, que as Escrituras nos evocam (Rm. 12.1,2; 1Co 14.15,19). Uma atitude corajosa de se agarrar à Palavra de Deus e balizar o mundo por Ela (Rm 1.8; Ef 3.9).

Assim, embora a ressurreição exija fé, exige também a compreensão da fé. E o projeto de Lucas neste evangelho se vê assim. Lucas faz um laborioso e inteligente relato. Trata-se de uma narrativa de estrutura ‘parabólica’, com alguns reflexos de diatribes (quiçá, herança paulina). A Ressurreição e a Revelação de Cristo aqui ganham a mesma configuração, aliás, a Ressurreição é a Revelação do Cristo Glorificado. Sob essa perspectiva, reconhecer a Revelação das Escrituras e seu contínuo desdobrar-se na iluminação dos textos bíblicos é reconhecer o Cristo glorificado. Só assim as Escrituras podem testificar do Cristo ao leitor de fé.
As narrativas acerca da ressurreição seguem uma estrutura que não permite a dicotomia entre Ressurreição e as Escrituras. Todavia, esta estrutura também aponta para o fato de que sem a Ressurreição as Escrituras não atingem o seu ápice lógico e profético; isto é, soteriológico (Mt 16.21; 26.54,56; At.17.3; Rm 16.26; 1Co 15.4).

O que concluímos com isso: sem a chave hermenêutica da ressurreição, do valor do sacrifício e da própria pessoa de Cristo, a Bíblia é apenas um conjunto de escritos históricos e com boas lições morais.

O fim principal desta dependência recíproca é a internalização de uma única verdade: Deus veio aos homens na Pessoa de seu Filho, a fim de conduzi-los a Ele perfeitamente aceitáveis (Ef.5:27; Col.2:10; 1Pe.2:5; Jd 24; Hb.9:24; 10.1). Isso configura o caráter profético das Escrituras, pois Cristo veio para chamar de volta o homem para Deus onde Ele próprio é o Caminho, a Verdade e, por conseqüência a nossa esperança de vida.

Veja como que esta Verdade se torna destituída de significado caso não existisse correspondência, dependência mútua entre Escritura e Ressurreição (ou Revelação) (1Co 15.14-17).
Lucas tira o foco de todas as aparições narradas nos outros evangelhos e o põe num só dia e lugar: Jerusalém. É desta cidade que os discípulos fogem e é para lá que devem voltar. Nela está o cenário do propósito redentor de Deus (Mt 2.1; 16.21; 20.18).
É de Jerusalém que os discípulos deverão partir corajosamente, a fim de pregar as boas novas. Mas antes, deverão entender esta mensagem ensinada pelo Senhor, cuja crucificação recebe o poder que se eleva à vergonha e horror da fé judaica (Lc 9.31; 24.47; At.1.4,8; 10.39). E é neste aspecto que Escrituras e as experiências advindas destas caminham juntas (Sl 119.9,11,25,50,133; Jo.17.17).

E é assim que a verdade resulta clara: a base de toda a experiência cristã deve ser as Escrituras (At.17:11; 2Tm.3:16).
Tal verdade pode ser diligentemente observada na exposição que Lucas faz acerca da conversação entre os dois discípulos a caminho de Emaús e o “ilustre Desconhecido”. É possível acompanharmos a cada passo neste caminho o modo como o “Desconhecido Caminhante” traz os “caminhantes” de volta à fé em Cristo, tão somente apontando e rememorando o que o Mestre havia dito acerca das Escrituras.

Da narrativa lucana pode-se extrair a implicação da Escritura na experiência dos discípulos. Tal implicação resulta significativamente na necessidade de tê-la pautando o nosso mudus vivendi da Fé Cristã. Vejamos, pois, pelo menos três delas:

A experiência cristã sem as Escrituras perde o significado (23,24,26-27)
As Escrituras só dão significado à realidade se estudada no seu todo e o seu todo tem como ápice a ressurreição (Lc 4.1ss; At 28.23; Rm 15.4; 2Tm 3.16).Logo, as chaves hermenêuticas fundamentais são: o Cristo, seu sangue derramado e seu triunfo sobre a morte efetivando a redenção humana.
Lucas tem vital interesse em apontar, narrativamente, “como Deus executa o seu plano em conformidade com o estabelecido na antiga promessa” (Lc1. 70). Vê-se frequentemente a expressão: “para que se cumprissem as Escrituras [...].” Jesus expõe a necessidade das Escrituras a citar desde Moisés aos profetas.
Kaiser nos lembra de que isto (a necessidade de ampliar o conhecimento dos homens quanto a Verdade do cumprimento das Escrituras em virtude da ignorância humana) ocorre frequentemente não só no Evangelho de Lucas, mas está por todo o livro de Atos dos Apóstolos [eg. At.26.22,23] (W. Kaiser, O Plano da Promessa de Deus, p. 339). 
Conforme Fabris e Maggioni,
Lucas se apressa em reler todos os particulares da crucificação e morte de Jesus através da grade dos textos bíblicos, em particular dos salmos [...], (e.g: Sl. 22.19; 69.22; 31.6; 38.12; 88.9).
Observemos que os dois discípulos de Lucas 24 conversam com o ‘Desconhecido Caminhante’ e dizem o que esperavam de Jesus: “Varão poderoso em palavras e obras, que iria libertar o seu povo [...].” Contudo, a exposição versa apenas parte das Escrituras. O sofrimento, a cruz, o pecado que o Messias tomaria sobre si, bem como a ressurreição, são ignorados (Mt 16.21; Lc 24.26,46; At 17.3)!

Esta perspectiva teológica das Escrituras não é totalmente suficiente para trazer a lume o significado da agradável sensação de ardume nos corações dos homens que ouvem o Estranho no caminho. O coração de Cléopas arde juntamente com a tristeza da morte de Jesus, confundindo as experiências às emoções e à realidade de uma teologia incorporada a um contexto de fé teo-político.

A literatura lucana é bela de significados (o que se observa sem o recurso de alegorias, mas que parece sempre querer dizer na mente do seu leitor mais do que se narra). Agostinho não resiste à provocação de Lucas e se rende: “O Mestre acompanha-os pelo caminho, Ele próprio é o Caminho; mas eles ainda não estão no verdadeiro Caminho.” Cristo estava vivo, mas os discípulos com a esperança morta. Que contraste entre a fé nas Escrituras e naquilo que se vive e vê!

Agostinho nos faz entender que, o Cristo que ressuscitou na tumba fria, deveria ressuscitar também nos corações cegos desses discípulos que não entendiam o plano divino. Têm a esperança assassinada por uma fé que espera alívio existencial nada além da sua concepção da vida (Rm 8.25; 1Co 15.19). Somente a compreensão das Escrituras preencheria de vida o coração desses homens (Pv 19.16; Jo 4.10; 6.55; 7.38; Rm 7.10).
Jesus durante o trajeto a Emaús expõe sabiamente a Escritura à altura do intelecto desses discípulos. Isto porque o Deus/Homem entra neste mundo apercebido de todas as mazelas humanas e sabe como ninguém utilizar-se da linguagem humana com o propósito de apontar, conscientizar e eliminar tais mazelas do coração humano (Rm. 8.3; Fl. 2.1ss; Hb 2.14-18; 4.15).
Ele sabe traduzir a linguagem do coração humano, bem como lê-la em amor (Jo 2.25; Hb 2.11): “O que é que vocês conversam?”, pergunta o Salvador aos homens que seguem incrédulos o caminho da ignorância da ressurreição.

Ora, o que se fala no “caminho” é aquilo que nos enche o coração; isto é, a realidade (Lc 6.45). As conversas do caminho buscam o consolo dentro de uma realidade que parece hostil à fé. O lugar da Ressurreição e das Escrituras é mostrar que a realidade é bem mais ampla para o Cristianismo do que para qualquer outra religião ou concepção de vida (Jo 11.25; Rm 8.31ss; Ef. 1.20; 2.6; Hb. 11.1ss).

O que se pode considerar como realidade nem sempre condiz com a verdade. A Verdade está além de uma concepção dita como real, haja vista que sempre nos enganamos. Deste modo, a Verdade, independentemente de meu juízo, existirá e há de se revelar (Jo 8.45; Gl 5.7; 2Tm 2.4; 1Jo 2.21; 2Co 13.8).
Morris acredita que os dois discípulos conversavam pelo caminho a fim de aliviar um pouco a tristeza. Procuravam na reciprocidade um pouco de consolo. Isto é notado no versículo 14 – “No caminho, conversavam (discurso) a respeito de tudo o que havia acontecido”; “Eles iam falando entre si e fazendo perguntas um ao outro”.

Todavia, a grande verdade é que nem sempre a troca de ideias ou experiências nos ajuda a entender a vida. Os discípulos precisavam entender o que havia dado errado bem como se agarrar ao pouco de esperança que nutriam conversando um com o outro. Estes homens deveriam aprender o modo como a Escritura auxilia o discípulo na esperança da ressurreição. Ela se tornará fundamental à incipiente comunidade da fé (Lc 20.36; At 24:15; Rm 6:5; 11:15). É nessa perspectiva que busca pela Verdade e do bem viver e do bem agir que a ação do Espírito Santo se fará norteadora e iluminadora, garantindo ao leitor a revelação da Palavra e, com isso, garantindo uma experiência sobrenatural com o Cristo vivo revelado pelas Escrituras.

Jesus torna as Escrituras significativas no caminho daqueles homens; isto é, no presente, na caminhada. Ela não é um escrito do passado. As Escrituras têm o seu cumprimento no hoje desses dois caminhantes errantes. É o passado se desdobrando sempre novo à frente das esperanças humanas (Sl 119.105; Is 40.8; 1Pe 1.23).

J. MacArthur declara que,
A pureza e a clareza da Bíblia produzem o benefício de “alumiar os olhos”. Ela provê iluminação no centro da escuridão moral, ética e espiritual. Ela revela o conhecimento de tudo que não pode ser realmente visto de outra forma (cf. Pv 6.23). A simples leitura sem a influência reveladora do Espírito Santo não promove vida. Portanto, há uma espécie de contínua revelação da palavra. Uma das razões essenciais de que a Palavra de Deus é suficiente para todas as necessidades espirituais humanas é que ela não deixa dúvidas a respeito da verdade essencial e, ao mesmo tempo, se desdobra na iluminação espiritual ao leitor que tem uma experiência com Deus.

A vida por si só já é confusa e caótica. Procurar a verdade fora da Bíblia só aumenta a confusão. Portanto, a experiência extra-bíblica é perigosa.

As Escrituras, em contraste com tudo isso, são muito claras (Pense biblicamente).

Jesus deve esclarecer aos discípulos o significado de todos os testemunhos que os dois discípulos ouviram. Tiveram várias evidências, mas o que são elas aos olhos que só se abrirão mediante o poder da Palavra? Observemos que a pedra estava removida, anjos foram vistos e ouvidos, mulheres testemunharam, Pedro viu o túmulo vazio. Por que não creram?
Fábris e Maggioni nos explicam que,
[...] a morte de Jesus já não é mais um incidente absurdo, mas o cumprimento de um projeto de salvação já revelado por Deus na Escritura. É esta interpretação teológica que torna a narração da morte não uma página de crônica macabra, mas o anúncio da salvação para os crentes (Os Ev. II, R. Fábris e B.Maggioni).
É este cumprimento veterotestamentário que foge à compreensão: não só dos dois discípulos a caminho de Emaús, mas de todos os discípulos até a ressurreição e a sua interpretação feita por Jesus (Mt. 26:31ss).

II- As Escrituras devem anteceder as experiências. Isso não significa que elas substituem as experiências, mas efetivam-nas.
Quando as Escrituras assumem o seu lugar, torna-se claro que a fé e a compreensão dos fatos bíblicos nos faz ver Cristo conosco, ainda que não o vejamos com os olhos físicos (2Tm 4.10,16-18). E esta aplicação é lúcida, pois,
Quando o Senhor começou a falar com eles, os discípulos ainda não tinham fé. Eles ainda não acreditavam na sua ressurreição; nem esperavam sequer que ele pudesse ressuscitar. Tinham perdido a fé; tinham perdido a esperança. Eram mortos que caminhavam com um vivo; caminhavam mortos, com a vida. A “vida caminhava com eles, mas em seus corações, a vida ainda não tinha sido renovada.” (Agostinho)

Jesus caminhou com os confusos e desiludidos discípulos cerca de onze quilômetros expondo-lhes as Escrituras.
Expor-lhes as Escrituras parece ter-lhe sido mais necessário no percurso do que a imediata revelação de sua ressurreição aos confusos companheiros de estrada. Não que isso fosse descartável, mas o ensinamento embutido nesse ato foi: a base de fé e de qualquer experiência espiritual é a Escritura. O que vier depois deve estar respaldado nela. Inclusive os próprios dons espirituais.
Só no final do percurso, já hóspede desses homens, Jesus se revela. Por qual razão? Porque é assim que Ele deve ser conhecido pelos homens: primeiro como cumprimento das Escrituras; depois, como aquele que se pode experimentar do prazer justificado por corações em brasas!

Portanto, para a Igreja do Senhor que já crê que Jesus é o cumprimento de toda Escritura, vale a experiência espiritual com Ele. Vale cear intimamente com Ele na congregação e fora dela.
Quando o coração ardia? Eles dizem: “Porventura não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, falava conosco e quando nos abria as Escrituras?” (24.32).
O coração desses discípulos ardia, mas por quê? O que significa um coração que arde com as Palavras que não lhes trazem entendimento? Somente toda a Escritura explanada traz sentido ao coração em brasas! É o que o Mestre procura fazer durante o caminho.

Há uma Revelação que progride ao longo do caminho, o que torna a Verdade de Deus mais clara. Cristo é a Revelação que se desdobra. A Bíblia nos oferece recursos e informações suficientes para a nossa salvação, mas Cristo quer se revelar e se desdobra, se mostra, revela-se ao crente pela ação do Espírito Santo.
Cristo lhes fala pelo caminho, isso conota constância. Logo, a Bíblia deve ser lida sob influência reveladora do Espírito Santo e isso conota também a experiência com o Cristo Revelado. Mas, contudo, a Escritura é a base, o primeiro plano, o referencial único.
Seus corações ardem ao ouvi-lo, mas eles só têm os olhos abertos no final do percurso. Jesus guarda-se de revelar a sua Pessoa a eles, por quê? Experiências a parte da exposição das Escrituras são “fogo de palha.” Toda experiência deve estar atrelada às Escrituras. Todo dom espiritual deve estar respaldado pelas Escrituras.

Parece-nos que, para Jesus, explicar aos discípulos as Escrituras era bem mais importante do que se revelar a estes. Ele compreende bem o paradoxo experimentado pelos discípulos no caminho: têm-se no caminho tanto as Escrituras quanto o seu cumprimento; isto é, o Cristo ressurreto. Mas tal paradoxo só é ‘compreendido’ mediante o coração que arde e a mente que absorve os ensinamentos de Deus.
Concordemos com Schroeder ao afirmar que,
Jesus havia querido, primeiramente, permanecer desconhecido para os discípulos a fim de instruí-los pelas Escrituras, antes de convencer-lhes por uma manifestação exterior, apropriada para impressionar seus sentidos (Comentario del Nuevo Testamento, L.Bonnet Y A. Schroeder).

A lógica é simples: uma vez passado o momento do alívio ou a memória da experiência, se exigirá outra que lhe satisfaça com maior vigor a carência causada pela primeira. E, neste momento, podemos nos perguntar se conseguiríamos trilhar o caminho da mudança da história, de acontecimentos contraditórios ou frustrações teológicas, amparados somente pela Escritura (2Co 11.4; Gl. 1.7,8)?
Àqueles que acreditam que as Escrituras devem a sua autenticidade às experiências (Lc 16.27-31), consideremos o que diz Lutero:

Fiz uma aliança com Deus: que Ele não me mande visões, nem sonhos, nem mesmo anjos. Estou satisfeito com o dom das Escrituras Sagradas, que me dão instrução abundante e tudo o que preciso conhecer tanto para esta vida quanto para o que há de vir.
Lógico que Lutero não estava dizendo ali que os dons espirituais e as experiências não são válidas e boas. São. Mas o que de fato deve nortear a Igreja são as Escrituras. O que vier em forma de dons espirituais e manifestações espirituais diversas devem ser mapeados pela Bíblia e pela verdade bíblica. Deus não se volta contra sua Palavra.

O fato de Jesus ter entendido ser urgência maior a sua exposição das Escrituras antes de sua manifestação aos discípulos de Emaús estabelece, não só o valor, mas também a sua experiência particular na meditação dos Escritos Sagrados.
Otto Borchert diz algo interessante sobre o relacionamento de Jesus com as Escrituras em seu ministério:

Ouvimos falar muito daqueles anos da Sua vida dos quais temos mais notícias, mas nunca ouvimos falar que ele usou essas horas de solidão para ler. O seu estudo da Escritura, portanto, deve ter precedido a Sua vida de ação, mas nos anos de semeadura e combates, Ele viveu essencialmente do que havia adquirido, tirando-o do tesouro da Sua memória. [...] Jesus encontrava Deus na Bíblia, a cada vez que a lia entrava em comunhão viva com Seu Pai (O Jesus histórico, p. 176,177).

Os discípulos colocaram a experiência à frente da Escritura: viram com seus olhos a Cristo, mas não o conheceram. Isto porque nem sempre o Cristo da experiência é o Cristo da Ressurreição.
Todavia, veja como o Senhor os trata e se relaciona com esses. Cristo segue perguntando, conversando, observando que estão tristes e se importando com a sua fé. Esses discípulos deverão entender o que significam as palavras de seu Mestre, ouvidas e pregadas durante três anos (Mt 26.55; Jo 14.9).
Que experiência no caminho! Que sentido faz a vida pautada pelas Escrituras! E que sentido faz um coração bater de emoção se no final a Verdade está sepultada?

O Rev. Valdir Oliveira, sobre esta passagem, aconselha àqueles que se frustraram no caminho a não colocarem a esperança naquilo que Deus não prometeu em sua Palavra. Isto por que Cléopas e o outro discípulo evitaram as palavras da morte e ressurreição de Jesus dando maior importância à vitória do Messias somente numa esfera político-teocrática (9.21,22; 24.21).
A esperança desses discípulos no Cristo projetado por seus anseios, e não nas palavras do Mestre, causou-lhes a decepção natural de quem costuma hiatizar a fé da razão.

J. MacArthur afirma incisivamente que
A falta de saída para os difíceis problemas da vida não é o resultado de inadequação das Escrituras; é o resultado da inadequação das pessoas no estudo e aplicação da Palavra. Se as pessoas amassem a Palavra de Deus como deveriam, ninguém jamais questionaria a suficiência da Bíblia (Pense biblicamente).
III-Somente nas Escrituras descobrimos de fato, quem é Jesus (21,25)

“Fica conosco senhor”, pedem os discípulos. Ele já estava, mas os olhos nada entendem sem o amparo das Escrituras (Mt 28.20; Jo 14.16,26; 16.7).

Se não se mostrasse, como é que os discípulos poderiam ouvir a sua pergunta e responder-lhe? Caminha com eles e parece segui-los, mas é Ele quem os conduz. Veem-no, mas não o reconhecem, “porque os seus olhos, diz o texto, estavam impedidos de O reconhecer... A ausência do Senhor não é uma ausência. Crê somente e Aquele que não vês estará contigo.” (Agostinho)
Jesus apresenta-lhes todo o conteúdo sagrado; isto é, Deus está no controle e o túmulo vazio está repleto de significado e história (Mt 25.34; Ef 1.4; Hb 9.26; Ap 5.12; 13.8). Uma vez aberto os olhos, Cléopas e o outro discípulo voltam a Jerusalém. Não é isto que significa ressurreição? Volver a Jerusalém, onde toda a história dos homens encontra o seu significado (Rm 11.36)?

De fato, conhecer o Cristo ressurreto das Escrituras é apaixonar-se (2Co 5.14; Fl 3.7,8). É querer que ele esteja sempre ao alcance de nossos olhos, de nossos sentidos. Não é debalde que o versículo 14 nos apresenta os discípulos desejosos de que o ‘Homem do caminho’(Cristo) permanecesse mais um pouco com eles. Cristo ainda se esconde na torpeza de seus entendimentos, mas a alma anseia enxergá-lo. Por quê? As Escrituras foram entendidas. Cristo, Completo Deus/Homem, o Salvador revela todo o sentido da história e dissipa toda a ideia de que a vida não faz mais sentido (Rm 10.4; Ap 22.13). A fé supera as emoções (Hc 3.17).

O Cristo ressuscitado levou os dois discípulos do diálogo no caminho ao reconhecimento de sua divindade. Conheceram a Jesus caminhante como homem, mas agora o RECONHECERÁ como o Deus/Homem. Louvemos a Deus por aquilo que a Palavra de Deus nos dá acerca do Salvador! Ele não é o derrotado na Cruz. Ele é o Deus Vivo (1Co 15.54,55)!

Uma observação também é válida: Cristo mostrou a Verdade pelas Escrituras, tão logo mostrando que são elas – as Escrituras - o fundamento da nossa fé. Mas a experiência póstuma nos ensina que: Crer que o Cristo é vivo pelas Escrituras é o ato suficiente para a salvação. Ter experiências com o Cristo que vive, fala e se revela é crescer na graça e no conhecimento do Pai. Contudo, as Escrituras é quem vão indicar se a experiência, o dom espiritual, etc. são válidos, pois as Escrituras e sua Verdade devem superar qualquer emoção.

De repente, ele se apresenta. "Jesus aproximou-se e ia com eles", a delicadeza do Verbo é pura poesia. O Mestre começa sua aula magna. Interroga, comenta, expõe as Escrituras. Fala de si mesmo com tamanha humildade que passa despercebido pelos olhos. Mas não pelo coração. Sem alarde, o coração denuncia a santidade que caminha ao lado.

Encanta-me a doce insistência divina em revelar-se para a nossa vagarosa inteligência. O testemunho das mulheres, a comprovação ocular dos outros discípulos que foram ao túmulo, a chama ardendo no peito, tudo isso, mas uma espécie de casca impermeável parece obstruir a claridade da revelação. Ainda bem que ele é luz! Compreendo aqueles dois porque sou exatamente assim. Lento, sou um peregrino a buscar, vasculhar, ler, pesquisar alucinadamente. O peito arde, mas os olhos protestam”. (Alan Brizotti)

Ora, quando as Escrituras antecedem às experiências pessoais, estas responderão às exigências daquela. Estas exigências são o resultado natural da ação das Escrituras no intelecto e coração (se de fato os pudermos separar) do discípulo.

Trata-se de uma exigência progressiva, que por si só já é a verdadeira experiência cristã; ou seja, uma vez entendida a ressurreição, Cristo é visto sempre entre o seu povo em seus corações, mediante olhos da FÉ (Mt 18.20; Jo 20.29).
A experiência das Escrituras obrigam os discípulos a nutrirem um novo tipo de relacionamento com Cristo. Depois de sua ressurreição, a realidade que Jesus traz ao mundo é totalmente outra. Somente será possível o seu relacionamento com os crentes pela fé (Rm 1.17; 5.1; Ef 3.12,17; 2Co 5.7; Gl 3.26; Hb 11.6).
O versículo 31 nos informa que Jesus some; por quê? Ora, uma vez que Jesus deixou claro o cumprimento das Escrituras, será a fé quem guiará os corações na chama da ressurreição! Tem-se por base os relatos do texto sagrado (Rm 10.4; Gl. 3.24)!

Lembremos a narrativa joanina, correlata ao texto lucano. No Evangelho de João (cap. 20) Cristo censura a incredulidade de Tomé, mas não parece tê-la feito a Pedro e João que, igualmente, tiveram que ‘ver para crer’. O texto joanino parece endossar a ideia de que Tomé recebera, agora, tanto o testemunho dos discípulos (João e Pedro), como o do próprio Senhor em aparição no meio deles. Trata-se de um testemunho duplo. A nova condição do Senhor ressuscitado exige também nova condição para ser encontrado (Lc 24.5; Jo 20.17).

Os discípulos chegaram à fé, mas não ainda à fé completa, cujas bases são o testemunho e as Escrituras. E não é diferente com os crentes. É caminhando com Jesus e a exposição de sua Palavra, dia a dia, que temos os nossos olhos abertos. Até, então, os discípulos trataram Jesus como um viajante à sua semelhança. Antes de ter as Escrituras aberta (Lc 24.45) nosso Senhor era mais um no caminho com esses discípulos: perdido, frustrado.
A nova realidade, trazida na ressurreição, exige que o coração que arde com a sua Palavra deve aprender a ler a história com “novos olhos”. Para tal é necessário percorrer todo o caminho que leva ao reconhecimento de Jesus: “a escuta da Palavra que muda coração” (Fábris e Maggioni).

Contudo, os dois caminhantes no relato dos fatos a Jesus, durante o percurso a Emaús, demonstram que tipo de fé nutria no Mestre: “Jesus era o homem de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras [...]” (Lc. 24.19). Mas não era Deus? Trata-se de uma “boa teologia” frustrada. Contudo, é este o fim de boas teologias sem bases bíblicas.

Observe o diálogo de Jesus com os dois. A princípio, Jesus apenas pergunta e eles expõem as suas esperanças teológicas frustradas. Depois, Cristo expõe outra perspectiva teológica: a Ressurreição. É outro modo de ver a vida e o seu vazio de significado. Basta que se observe a trajetória dos discípulos após a conversa com Cristo. Uma vez levados à compreensão das Escrituras, convencidos de que a interpretação que ouvira era de fato coerente, são renovados e se põem a caminho de volta a Jerusalém.
A simultaneidade da descoberta é encantadora. Ao término de todo o movimento textual; isto é, explicação da Palavra, chega-se à visão daquele que sempre estivera ao alcance de seus olhos. São duas verdades de uma mesma realidade. Cristo está com eles, mas não veem. Depois, Cristo não mais lhes está ao alcance dos sentidos, mas pode ser visto. Entenderam que o túmulo vazio representa a plenitude da presença de Jesus no coração dos crentes. Nunca o vazio esteve tão repleto de vida e significado.
Coração e mente funcionam juntos ao som das Palavras de Jesus, naquele caminho. E ao final de toda a exposição, Cristo desaparece, mas o coração e a mente são capazes de regressarem onde tudo começou. E isto é assim, pois, descobrir o Cristo das Escrituras é regressar à origem, é recomeçar e buscar a comunhão com o seu povo. É contar a alegria da vida (Lc 24.52)!
Entender as Escrituras e experimentar da Ressurreição é redescobrir todo o cenário do amor divino. O objetivo de Jesus era o de fazê-los retornar a Jerusalém e reincorporarem o número dos discípulos em seus relatos acerca da visão do Cristo ressuscitado (Lc 24.33,35).

Observemos como Jesus distrai os olhos desses homens voltados para o aqui e os eleva às Verdades Eternas. “Do que vocês estão falando”? “O que dizem as Escrituras, pergunta Jesus”. Trata-se de uma pergunta que implica em convicção não no rumo em que a história parece tomar, mas naquilo que a Palavra diz que tomará.
A realidade que os discípulos enfrentavam apontava para a vitória da morte. Transformara a verdade em mentira. mas é nesse momento que se deve perguntar: o que dizem as Escrituras? Isto é essencial porque a nossa esperança pessoal e teológica frustradas não implica numa cruz que derrota a Cristo ou num túmulo que o impeça de caminhar junto ao crente em angústias ou frustrações.
Não levemos em nossa caminhada os velhos sapatos da incredulidade ou a leitura da vida pelos noticiários da TV. Ao contrário, busquemos um coração que arda em sentido a partir da ressurreição.

Murilo Mendes acertadamente declara o Cristo que viu neste texto. E assim o divide: 1- O Cristo companheiro, sempre interessado na relação. “Ser amigo é repartir a vida.”; 2- Cristo hóspede; 3- Cristo das Escrituras.

Desconhecer as Escrituras é o mesmo que desconhecer a Cristo, pois são elas que dele testificam! (?) Este Cristo no caminho de Emaús é o paradoxo da discrição e penetrante, delicado e severo, humilde e sábio, Sofredor e vitorioso. Conhecemos este poderoso servo sofredor que demonstra no sofrimento seu grandioso poder, que vence em se revelar servo, sendo verdadeiro Rei?
Os discípulos devem, agora, voltar e relatar toda sua experiência no caminho. Mormente, a experiência esteve repleta de significado e embasada pelas Escrituras explicadas pelo próprio Senhor.
Se por quiasmo ou diatribe não o sei, mas não parece ser por acaso que, depois que os discípulos tiveram os seus olhos abertos, Cristo tenha desaparecido! Por quê? “Jesus abriu a mentes deles para entenderem as Escrituras” (v.45). É a Palavra de Deus quem os deverá guiar, agora. As póstumas experiências apenas serão sinais que acompanharão os que crêem (na Palavra).

Conclusão

A Fé Cristã não é cega ou puramente razão (1Pe 3.15). As Escrituras não dicotomizam o homem em animal (puro instinto) e máquina (resultado físico de leis). O homem é um ser que se apercebe enquanto físico-espiritual. Pois o Cristianismo crê que
Ninguém pode ser persuadido a se tornar cristão. Contudo, ignorando as normas racionais, a experiência religiosa é menos bíblica e evangélica. Alguém pó ser persuadido intelectualmente sobre a consistência lógica e verdadeira do conceito evangélico em relação a Deus e ao mundo. De outro lado, esse alguém não precisa ser um crente para compreender as verdades contidas na revelação divina. Uma pessoa convencida intelectualmente da verdade do Evangelho, mas que busca fugir ou adiar sua decisão pessoal quanto à confiança salvadora, está divinamente condenada, porém, a fé pessoal é um dom do Espírito. O Espírito Santo usa a verdade como instrumento de convencimento e persuasão (Pense Biblicamente, J.MacArthur).
Logo, tem-se na narrativa dos dois discípulos no caminho de Emaús um exemplo de que a fé cristã deve controlar tanto a razão como as emoções (1Co 14.14,15,32). É deste modo que se pode ter a mente e o coração aquecidos.


Artigo da Revista: Teologia Brasileira/ Texto de Eliandro da Costa Cordeiro/ Adaptação e considerações de Gabriel Felipe M. Rocha

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